EDITORIAL

Guilherme Falcão
Dizem que os séculos são definidos por tudo que se passa na década de 20 — como se as décadas de 00 e 10 ainda trouxessem consigo um pouco do retrogosto de chorume decantado do século anterior. Penso nos anos 2000 a 2019 e lembro que fui feliz a maior parte deles (ou menos infeliz), e penso que gosto de vinho laranja, e que isso pode ter a ver. Mas isso não vem ao caso.

À medida em que prosseguimos no terceiro ano dessa década, diria que o prognóstico para o restante do século não me parece nada animador. Pandemias globais, o fim da colaboração multilateral entre nações, crises climáticas que levam a crises de recursos (permacrise, procure saber), nacionalismos e recrudescimentos políticos, violências sociais, o fim do aspecto “social” nas redes, o estresse relaxante do doomscrolling, o quiet quitting, a volatilidade utilitarista das situationships. Entre 2020 e 2023, habitamos um planeta que parece estar tentando se livrar de nós por conta de situações que nós mesmos causamos; e a fibra do tecido social parece se desfazer cada vez mais, esgarçando-se entre threads violentas de twitter, desinformações de mensageiros digitais e comportamentos obsessivos que tornam a realidade tolerável.




Em algum ponto do final de 2022, enquanto brifava um criativo de branding e expressão de marca sobre um novo projeto na companhia em que trabalho, tentei definir o que eu esperava ver do outro lado. Procurei diagnosticar uma apatia que me acometia há algum tempo: olhando por aí, para a cultura visual, a comunicação, a arte, a moda, o que seja, percebia em mim uma estranha sensação de tédio e calmaria. Como se as narrativas todas que nos trouxeram até aqui tivessem, de alguma maneira, se encerrado. Na moda o streetwear, o utilitarismo e o overdressing pós-pandêmico não traziam mais nada de novo (penso que o stealth luxury, para além do desejo de ser bilionário, representa quase um reset mental dos guarda-roupas); a crise das empresas de tecnologia impactando a economia e o mundo dos negócios e, portanto, a comunicação social, o design: a narrativa e promessa de um mundo melhor – por meio dos gadgets, apps e devices – que chegava ao fim, com demissões em massa e a constatação de pessoas terríveis (quase sempre homens, quase sempre brancos, sempre sempre mimados) ainda tomando as decisões. O pós-cinema entretenimento em que tudo é biografia, boneco ou adaptação, e o frescor do blockbuster de capa e raio laser murchava em uma fórmula caça-níqueis de “universo”. A exaustão de narrativas identitárias, antropológicas, etnográficas nas artes visuais (mais uma exposição que seria um belo livro). A astrologia e a autoajuda afetiva com base na psicanálise rasa tentando prescrever a cura para o que apenas existe tratamento.

Para onde quer que eu olhasse e buscasse sentir alguma coisa, nada para se enxergar ou sentir.  E não era a calmaria que precede uma tempestade. Era apenas calmaria. Na faixa da quebra, com as águas nas canelas, um repuxo que não se encerra nem acumula volume. Não há onda, nada vai, nem virá.



Sinto que estamos gritando à beira de um abismo, com toda uma história de traumas (e certas vitórias) atrás de nós, e nada à nossa frente. Sobrecarregados de estímulo, mas cada vez mais habitando um espaço negativo de significados. Silêncio. Vazio. Vácuo. Esperamos que algo possa vir para tomar o seu lugar. Mas se vier, o que seria? Essa edição de Gaveta convida um grupo de pessoas para se debruçar sobre essa questão.


Guilherme Falcão
São Paulo, Verão de 2023
Gaveta
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VAZIO/ Void/ Vide/ Vacío
Setembro/2023
Tuesday Oct 5 2021